Opinião | Quando o discurso vira vala: a falência moral na política brasileira

Por mais que estejamos acostumados a aberrações verbais no cenário político nacional, há momentos em que o abismo entre o cargo e a compostura se escancara de forma grotesca. É o caso da declaração recente do governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues (PT), que sugeriu que eleitores de Bolsonaro fossem levados “para a vala” com uma “enchedeira” — jargão para retroescavadeira. A frase já seria absurda vinda de qualquer cidadão. Dita por um chefe de Estado, soa como um convite ao extermínio simbólico (ou nem tão simbólico assim) do adversário político.

Sim, a fala foi seguida de um pedido de desculpas. Ou quase. “Se o termo vala e o termo trator foi pejorativo ou foi muito forte, eu peço desculpa.” Se. Não foi um pedido de desculpas — foi um cálculo político para conter danos. E, como é habitual em declarações dessa natureza, a desculpa veio acompanhada da alegação de que tudo foi “tirado de contexto”. O velho expediente de quem diz o que pensa, mas não quer pagar o preço por isso.

O mais inquietante, porém, é o cenário em que essa fala ecoa. A Bahia lidera, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, os índices de letalidade policial do Brasil. Um em cada quatro mortos por agentes do Estado no país tombou em solo baiano. Um dado alarmante, considerando que o estado abriga apenas 7% da população nacional. Quando um governador de um estado com tais números faz piadas sobre jogar pessoas em valas, o discurso se funde perigosamente com a prática.

Não é difícil traçar um paralelo com as infames declarações de Jair Bolsonaro, que eternizou barbaridades como a conclamação para “fuzilar a petralhada”. A diferença entre os extremos ideológicos está, por vezes, mais na camiseta do que no conteúdo. Em ambos os casos, há uma retórica desumanizadora, beligerante e irresponsável, que transforma o adversário em inimigo, e o inimigo em lixo.

Rodrigues quis parecer firme, indignado, popular — tropeçou no abismo do autoritarismo mal disfarçado. Bolsonaro, por sua vez, logo usou a fala para se colocar como vítima, ignorando o próprio currículo recheado de frases igualmente (ou mais) violentas. É o velho jogo de cinismo mútuo: cada um acusa no outro aquilo que pratica com entusiasmo.

Ambos os lados afirmam que não incitam a violência diretamente. Alegam que suas palavras são apenas metáforas, críticas, desabafos. No entanto, discursos não são inocentes. A história já nos mostrou, em diferentes latitudes, como palavras precedem tragédias. Quando líderes — sejam eles políticos, religiosos ou sociais — escolhem expressões que flertam com a violência, eles não apenas refletem um estado de ânimo: moldam um ambiente, validam ações, deslocam limites éticos.

Num país onde o ódio político já custou vidas — vide o assassinato de Marcelo Arruda em 2022 ou o ataque a faca contra Bolsonaro em 2018 — declarações como a de Jerônimo Rodrigues são mais do que lamentáveis: são perigosas.

Ficamos, então, com o retrato de um Brasil em que o vocabulário da vala e da bala atravessa siglas e ideologias. Onde a retórica de extermínio é a nova moeda de popularidade. E onde a política, em vez de civilizar o debate, cava seu próprio buraco moral. Com ou sem retroescavadeira.

232 Visualizações

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *